Do sobranceiro terraço da casa de Nazaré Soares avistam-se, ao fundo da colina, sobre o Rio Antuã, os velhos moinhos de água e a antiga casa de morada dos pais onde nasceram e foram criados doze filhos, oito rapazes e quatro raparigas que, enquanto solteiros, trabalharam para a economia familiar.
Dos moinhos, só resta a solidão das ruínas e é já impossível reconhecer a antiga serventia da ancestral edificação que outrora era sinónimo de alimento e sustento. Quanto à casa, há tantos anos devoluta, Nazaré Soares explica que no andar de baixo se localizavam antigamente os currais. Já na parte de cima ficavam os humildes aposentos da habitação, rodeados por um terreiro onde reinavam os galos e as galinhas e, num anexo lateral à casa, encontrava-se o celeiro, o importante abrigo dos cereais colhidos na primavera e verão.
Explica também que, ali perto, do outro lado da rua, se encontravam as terras arrendadas, que eram lavradas pela família. Sachava-se o milho, semeavam-se as batatas, as couves, para não faltarem os alimentos básicos à sobrevivência do alargado agregado familiar.
Foram tempos difíceis, esses da infância, de tal forma desprovidos que, dos doze irmãos, apenas três tiveram a sorte de frequentar a escola até à terceira classe, porque todos os restantes nem o nome aprenderam a assinar. Quanto à roupa, lavavam ao sábado para terem o que vestir ao domingo, e não tinham direito a mais do que uma «saiita», um «aventalito»... “Só quando comungávamos é que tínhamos a sorte de receber umas «sandalitas» novas”, desabafa Nazaré Soares. A única forma das meninas conseguirem uma peça de roupa nova era saírem, elas próprias, com umas regueifas na cesta, aos domingos, para tentarem trazer uns «trocos» nos bolsos.
Nazaré Soares recorda que, sendo ela a filha mais nova, ainda foi batizada pela irmã mais velha, à data solteira, o que significa que os doze irmãos conviveram todos na mesma casa até à altura em que os mais velhos começaram a sair pelo casamento.
Lembra-se do trabalho nos moinhos do pai e de ser obrigada a transportar os sacos de 50 quilos à cabeça, porque os caminhos eram tão maus que a carroça dos bois tinha que ser empurrada a braços para subir a ladeira de pedras e sulcos. Para além da distribuição da farinha pelas várias padeiras da aldeia, separavam a farinha do farelo à mão, pesavam os alqueires, enchiam os sacos e picavam a pedra.
O trigo era comprado e o transporte era tantas vezes ameaçado pelos fiscais que controlavam a atividade. Nazaré Soares conta que perdeu um irmão por causa dos fiscais, muito novo, com pouco mais de vinte anos, mas já pai de três filhos. “Ao fugir dos fiscais abriu a porta do camião que transportava o trigo e morreu debaixo do rodado. Andava tudo à «candonga», não havia papéis e os fiscais não perdoavam, as multas eram pesadas”, lamenta Nazaré Soares.
Nazaré Soares, padeira de Ul atualmente com 76 anos, nasceu numa família de padeiras e desvenda que todos os irmãos, sem exceção, seguiram os ofícios dos pais. “As raparigas deram todas padeiras, os rapazes moleiros e lavradores e houve um irmão que foi carpinteiro, porque o pai também o era, fazia alguns trabalhos em casa".
Já a avó era padeira e lembra-se dela «corcovadita», tal e qual a irmã Celeste, a fazer o pão. Dos doze irmãos, já só restam três vivos e das quatro irmãs padeiras apenas a Celeste continua a acender, diariamente, o forno a lenha que coze uma meia dúzia de padas de Ul que vão à mesa da vizinhança mais próxima.
Quanto à mãe, recorda que cozia dia sim, dia não, e vendia nas feiras dos concelhos vizinhos. Naquela altura cozia-se pouco, porque as canastras eram transportadas a pé. “Bastavam umas 50 ou 100 padas para as canastras estarem carregadas e pesarem na cabeça”, refere Nazaré Soares. Nesse passado distante, em que a moeda ainda era em escudos, Nazaré Soares lembra-se que as carreiras custavam 15 tostões (1 escudo e cinquenta centavos), as regueifas 25 tostões (2 escudos e cinquenta centavos). Uma pada vendia-se a 10 tostões (1 escudo), mas duas padas já só custavam 15 tostões (1 escudo e cinquenta centavos).
Nazaré Soares casou com dezoito anos e meio, em outubro de 1964, e foi viver para a casa da sogra durante três meses. Depois, o casal arrendou uma casa já com padaria montada, onde residiu dezoito anos, até à altura de se mudarem para a atual habitação construída à custa de muito trabalho, ao longo de cinco anos. Tanto ela como o marido passavam os domingos na La Salette, a vender pão e regueifa, porque era com esse dinheiro extra que conseguiam ir edificando, pouco a pouco, aquela que veio a ser, até hoje, a morada de família onde criou os seus quatro filhos.
Até se casar, fazia a venda em Vale de Cambra, Cepelos, Algeriz, Senhora da Saúde, viagens que eram empreendidas a pé, de verão e de inverno. Muitas vezes, o regresso era também feito a pé e ainda transportava um molho de lenha à cabeça para aquecer o forno no dia seguinte. “Nesses tempos, os montes estavam sempre limpos, porque se apanhava tudo o que podia arder: cascas, ramalhos, gravetos. Esfolavam-se os eucaliptos de cima a baixo para trazer as cascas para os fornos”, explica Nazaré Soares.
Recorda que no inverno, para iluminar o caminho, era preciso utilizar umas «vistas» na mão e quando “tratava de chover, entrava-nos na cabeça e saía pelos pés, triste vida", lamenta Nazaré Soares, “mas havia força e saúde para tudo, apesar de se comer tão mal. Agora há tanta fartura e a gente não presta para nada, acrescenta”. Só depois de casar é que arranjou freguesia no Pinheiro da Bemposta, venda à qual o filho dá hoje continuidade.
Nazaré Soares também fazia as feiras e festas típicas da região. Quanto às feiras deslocava-se a Vale de Cambra, Cesar e Arrifana. Explica que a Nazaré do Rocha e o marido, que vendiam ovos e galinhas também para as feiras, tinham uma camioneta e as padeiras de Ul juntavam os carregos do pão à beira da estrada para serem transportados até ao destino. “Pagávamos, obviamente, o transporte das canastras, mas quando chegávamos, o pão já lá estava à nossa espera”, refere Nazaré Soares. Depois as padeiras foram comprando carro próprio e passaram a ter autonomia.
Relativamente às festas, romavam até à Nossa Senhora de La Salette, Nossa Senhora da Saúde da Serra, em Castelões, Nossa Senhora das Flores, em Travanca, ao Espírito Santo, em Cepelos, ao São Luís, no Pinheiro da Bemposta, ao Santo Estevão, em S. João da Madeira.
Nazaré Soares explica que, dos seus filhos, apenas o rapaz, o mais velho, escolheu exercer a arte do pão que percorreu tantas gerações. Já as filhas optaram por outros caminhos e tiveram a sorte de conseguirem rapidamente encontrar empregos na sua área de preferência. Tem cinco netos, todos rapazes, três dos quais futebolistas.
Começou a cozer com nove anos quando saiu da escola e nunca mais parou a não ser há cerca de três anos, quando deixou de trabalhar, passando definitivamente a padaria para o seu filho António Soares. Até há bem pouco tempo ainda aproveitava o dia de folga do filho, ao domingo, para matar as saudades do pão e das rotinas que a rodearam durante mais de cinco décadas.
No entanto, os problemas de saúde do marido levaram-na a afastar-se e tem pena de já não poder cozer até porque, enquanto trabalhou, vendia o pão de segunda a domingo, sem folgas, e só parava no dia de Natal porque sabia que nesse dia os clientes não procuravam tanto pão porque sobrava muita comida da consoada. Sempre trabalhou de noite, levantando-se, durante a semana às quatro horas da madrugada e, ao fim-de-semana, mais cedo, às duas da manhã.
Já o marido foi sapateiro e após regressar do serviço militar obrigatório e da guerra colonial na Guiné Bissau, montou a sua própria empresa de calçado, onde o filho também chegou a trabalhar. Mesmo assim, sempre ajudou na padaria, principalmente ao fim-de-semana, quando o trabalho duplicava de volume.
Tirou a carta de condução com 27 anos, quando estava grávida da filha mais nova, e com 28 anos já tinham nascido os seus quatro filhos. Recorda-se que foi obrigada a fazer a 4ª classe na Feira dos 11 para se propor ao exame de condução, uma vez que só tinha estudado até à 3ª classe. Quanto à padaria, comprou-a na mesma altura em que comprou o terreno para construir a sua casa, porque a dona era a mesma.
Relembra, com ternura, que a sua padaria já tinha sido local afamado de vendas porque aí funcionou a loja da “Ti Alzira”, que deu lugar à atual padaria da “Ti Nazaré”, como ainda é conhecida na aldeia. Também aí dormiu muitas noites, porque para além da padaria, da casa faziam parte um quarto, sala, cozinha e casa de banho.
Espera que o seu nome possa permanecer ligado à padaria por muitos anos, porque é sinal que o pão continuará a fazer parte da história da família. Acredita que o pão de Ul, apesar de ser um ofício exigente em termos de horários, terá sempre futuro, porque a sua valorização equivale ao reconhecimento de uma tradição que não se pode perder.