É no coração de Ul, junto ao largo da Igreja, que vamos ao encontro de Maria de Lurdes Tavares Resende, 68 anos, padeira e uma das mais genuínas representantes desta profissão carregada de herança e de história.
Filha e neta de padeiras, reside na mesma casa onde antigamente a avó e a mãe coziam o pão, ainda que com o tempo as instalações tenham vindo a ser ampliadas e modernizadas.
Nos tempos da sua avó era na cozinha que se encontrava o velho forno de lenha, o lugar da comunhão familiar, o santuário da casa, espaço de azáfamas, aroma a lenha e a pão, encontro de gerações e palco das conversas “fiadas” ou importantes, porta sempre aberta à qual se assomava a vizinhança para comprar o pão quentinho às primeiras horas da madrugada.
Agora, a padaria é um espaço independente da casa, um ambiente amplo onde residem dois fornos, perfeitamente alinhados, cujas portas em ferro cinzento dão austeridade a uma colorida parede de azulejo tijolo.
Relembra que desde menina sempre ajudou a sua avó. Deveria ter uns 10 ou 11 anos quando aprendeu a cozer o pão. O avô era alfaiate e os seus sete filhos seguiram, na sua maioria, os ofícios dos pais: “as meninas deram padeiras e os rapazes deram alfaiates”, refere.
Lurdes Resende só estudou até à quarta classe porque não quis prosseguir os estudos, apesar dos pais a incentivarem a estudar. Ainda chegou a trabalhar numa fábrica, mas acabou por voltar à padaria, profissão que nunca mais abandonou.
Diz que o principal fator que a levou a ser padeira foi ter tirado a carta de condução aos 18 anos, “algo que era muito raro naqueles tempos”. Ao ter comprado carro ganhou a mobilidade necessária para fazer as vendas e esse foi um fator decisivo para ter abraçado a profissão.
Afirma que a sua mãe sempre vendeu o pão em condições muito difíceis, de canastra à cabeça, a percorrer quilómetros pelo lugar e pelas freguesias, para fazer chegar o produto aos clientes. Para vender em São João da Madeira e em Santiago de Riba-Ul, a mãe apanhava o comboio no apeadeiro de Ul e ia de automotora, acompanhada por tantas outras padeiras que transformavam a atmosfera das velhas carruagens em aroma de pão quente.
Já para as feiras dos 15 de Santo Amaro em Estarreja, dos 9 e dos 23 em Vale de Cambra, dos 18 em Cesar, e para a Feira dos 4 em Arrifana, a mãe ia à boleia de um senhor de Ul que tinha uma camioneta para venda dos seus produtos levando, com ele, as padeiras da freguesia. Não havia carros, partilhavam-se os poucos que existiam. “Os tempos eram muito diferentes e muitas destas solidariedades foram-se perdendo com a evolução e o progresso da sociedade”, realça.
Lurdes Resende lembra-se da sua mãe participar todos os anos nas Festas de La Salette. O pão era enviado para o parque através de “um senhor que distribuía gás e tinha uma motorizada com uma carroçaria atrás, onde levava as canastras do pão.” Naquela altura, todas as padeiras participavam nas festas, era “um correr de padeiras pela rua onde atualmente se expõe o artesanato e as roupas”.
Guarda também boas memórias do S. Brás. “Antigamente as festas tinham outro valor que não têm agora”. Chegavam a Ul milhares de pessoas de fora para procurar o pão. Hoje em dia a festa já não tem a mesma dimensão e importância, ainda que se mantenha a tradição de abrir as portas das padarias para receber os visitantes.
Tudo era diferente, em vez das padinhas de Ul faziam-se as carreiras (um conjunto de quatro pãezinhos), que eram vendidas a 25 tostões. Relativamente às regueifas estas eram confecionadas apenas para os dias de festa. Já as padas eram vendidas a 15 tostões e as padinhas pequeninas a 5 tostões. “Havia muita oferta, casa sim, casa sim, encontrávamos famílias de padeiras e moleiros. Só no Crasto “existiam três padarias seguidas”.
Lurdes Resende conta que houve tempos em que as padeiras viram a sua atividade ameaçada. “Foi o Padre Fonseca, que era muito amigo do Dr. Albino dos Reis, de Loureiro, deputado da Assembleia Nacional em Lisboa, que se mobilizou para proteger as padeiras. No entanto, nessa altura, obrigaram as padeiras a acabar com as carreiras e foi quando se começou a cozer as padas que hoje todos conhecem.” O Padre Fonseca era muito conhecido por todos os habitantes de Ul e estava na freguesia há uns anos, por isso defendeu sempre as padeiras.
Na sua padaria, possivelmente a maior de Ul, trabalham quatro ou cinco pessoas em simultâneo, dependendo do número de encomendas do dia, numa atividade de caráter familiar que conta com a dedicação do irmão, da cunhada, de uma afilhada, de uma prima e de quem é chamado pontualmente para ajudar em alturas de mais aperto.
O pão, feito apenas com farinha, água, sal e fermento, é amassado na amassadeira elétrica, que veio retirar o trabalho de mãos e braços, onde depois repousa por trinta minutos. Segue-se a tarefa de pesar a massa e fazer as bolas, com cerca de 1,8 kg, que são posteriormente colocadas no cortante, dividindo-se em trinta pãezinhos iguais que são dispostos nos tabuleiros para levedar. Nesse intervalo o forno é aquecido pela lenha e é preciso esperar que as paredes do forno estejam brancas para perceber que atingiu a temperatura certa, nem quente demais – senão queima o pão – nem frio demais, caso contrário o pão não cresce.
O pão mole coze entre 15 a 20 minutos, já para tostar são precisos quase 30 minutos. “Quando a fornada é pequenina, normalmente o pão fica melhor; se o forno estiver muito cheio, nem sempre fica tão bem”. Os seus fornos têm uma capacidade para cozer em simultâneo 300 padas. Há dias em que são feitas quatro fornadas, outros ainda mais. No entanto, a cada fornada que se retira, o forno tem que reaquecer e, para isso, são dispostas algumas achas de madeira que, ao arder, viram brasas incandescentes de calor.
Quanto à técnica das regueifas, a massa leva os mesmos ingredientes do pão, acrescidos da canela e do açúcar. Após tender a regueifa, fazem-se as bolas, deixam-se a levedar, abrem-se os buraquinhos redondos e douram-se com o ovo.
Os seus clientes são, essencialmente, pessoas particulares, restaurantes, mercearias e empresas em Oliveira de Azeméis, Loureiro, Santiago de Riba-Ul e São João da Madeira. Lurdes Resende procura manter a qualidade para não perder os clientes. Apesar de cozer muito pão e de receber várias propostas, nunca aceitou levar o pão de Ul muito longe, porque não é fácil conservar os seus atributos. O pão teria que ser cozido muito cedo, durante o transporte ficaria mais duro, nunca seria tão valorizado como quando chega quentinho. Explica que tem uma venda em São João da Madeira onde faz duas entregas, às 8h00 e às 11h00, para que o pão esteja sempre quentinho.
Lurdes Resende trabalha mais à quarta, quinta, sexta-feira e ao sábado. O domingo é dia de descanso. As pessoas à segunda e terça querem menos pão, compram muito ao fim-de-semana nos hipermercados e por isso as encomendas são menores no início da semana.
Sente algum receio pelo futuro do pão, mas não quer ser pessimista. Expressa, com apreensão, a atual crise dos cereais, que já provocou por várias vezes aumentos consideráveis no preço da farinha. Também a lenha tem escasseado e por causa da sua falta, o preço é muito alto. No entanto, o pão é alimento básico e o preço não pode aumentar todos os dias.
Refere, com resignação, mas também com um sentimento reconfortante de destino cumprido, que “foi esta a vida que escolheu e que faz o melhor que pode”. Não se aborrece, faz tudo com gosto. Apesar de ser uma vida difícil, dura, que implica trabalhar durante a noite e ao fim-de-semana, tem tido a audácia e a mestria de transmitir o conhecimento aos seus colaboradores, confiando-lhes a enorme responsabilidade de poderem contribuir para dar continuidade, no futuro, à sua profissão.