Para Maria da Luz Ventura Tavares Ferreira, padeira de Ul, com 74 anos de idade, “o pão transporta-a aos melhores momentos da sua vida, especialmente à infância, à padaria da mãe e ao moinho do pai. Cresceu entre padeiras, cestos e cheiro a pão. Para ela, pão é sinónimo de afeto, tem alma e coração”, afirma.
“Faz tudo com muito amor e, por encontrar «no fazer o pão» uma forma de expressar carinho e atenção pelos clientes, desenvolve sentimentos de amizade com muita facilidade”, revela. Os clientes dão-lhe muita força e vontade para continuar a trabalhar. Gosta muito do que faz, é a sua profissão, e por ter sido habituada de pequenina, ainda sente a mesma satisfação de sempre.
A mãe foi padeira dos 18 aos 82 anos e faleceu com 89 anos de idade. Os seus avós maternos não eram padeiros, mas a avó paterna também o foi. A avó materna vendia nas feiras uma grande variedade de produtos, tais como frangos, coelhos, ovos e também peixe.
Luz Ventura conta que a mãe, na sua mocidade, se deslocava a pé ao Furadouro para ir comprar peixe, com o objetivo de o revender nas feiras em Vale de Cambra, até ao dia em que alguém comentou que era uma «moça» demasiado «jeitosa» para ser peixeira. Tal pensamento ficou-lhe na memória e decidiu deixar o peixe para ir cozer pão, sem qualquer experiência. E como o trabalho não corria bem, houve uma pessoa amiga, padeira, que a convidou para aprender a arte, e após estes ensinamentos, deu início ao ofício de padeira que desempenhou para o resto da sua vida.
Já o pai foi moleiro e tinha uma casa de moinhos na Salgueirinha, depois da ponte romana, com três mós. Este moinho ainda existe, mas está fechado, ainda que conserve religiosamente muitos dos equipamentos que lhe deram vida nos tempos passados: as moegas, as mós, os rodízios e as pás.
O pai faleceu há três anos, com 92 anos de idade e, até falecer, foi um dos últimos representantes vivos da arte moageira nesta aldeia de Ul. Quando Luz Ventura tirou a carta de condução acompanhava o pai na distribuição da farinha, porque o pai não moía só para casa, mas também para as tias, para a avó e para outras padeiras da freguesia. Luz Ventura enchia os sacos, o pai acartava até à carrinha e percorriam a aldeia na venda da farinha. Hoje, a memória da moagem habita apenas num único representante, o Sr. Armando Reis, de tantos moleiros que a aldeia conheceu.
Luz Ventura começou a ajudar a mãe na padaria assim que saiu da escola primária. “Filha de peixe sabe nadar” e, com apenas 6 ou 7 anos de idade, Luz Ventura já tendia os pequenos pãezinhos com mestria. Aos 14 já cozia o pão como a mãe, com a mesma habilidade e desenvoltura. A mãe também contava com o apoio de uma empregada na padaria, uma vez que nesses tempos se vendia muito pão, essencialmente para Vale de Cambra, onde se encontrava a maioria dos clientes.
Fazia o mercado em Vale de Cambra, mas também todas as festas e feiras das redondezas. Os 4, em Arrifana, os 18, em Cesar, os 9 e os 23, em Vale de Cambra, os 15 e os 30, em Santo Amaro e os 16, em Cepelos. Quanto às festas, vendia no São Brás, na Senhora do Desterro, na Senhora da Saúde e na Senhora das Flores, em Travanca. A mãe sempre trabalhou muito e “onde havia uns cantadores, a mãe lançava-se ao caminho, canastra na cabeça, para não perder a oportunidade de ganhar mais esse dinheirito”, recorda com afeição.
Nesses tempos, vendiam as carreiras, os canocos, as padinhas a 25 tostões e as regueifas a 3 escudos. Saíam de Ul às cinco horas da madrugada, o longo caminho era feito a pé e só a viagem de regresso era feita de camioneta até ao centro de transportes de Oliveira de Azeméis, percorrendo novamente o caminho a pé até casa. Mas lembra-se de mandar o pão nas camionetas para Vale de Cambra e, às vezes, até em carros de bois.
Também se recorda que a mãe e a empregada aguentavam essas longas jornadas a caminho de Vale de Cambra apenas com o café da manhã e só voltavam a comer quando retornavam a casa. “Passavam-se muitas dificuldades”, confessa. Luz Ventura nunca foi obrigada a viver estas pesadas travessias, porque era muito «franzinita» fisicamente e a mãe poupava-a às longas caminhadas até Vale de Cambra.
De referir que esta condição só se alterou quando Luz Ventura tirou a carta de condução aos 18 anos, o que veio facilitar a distribuição. No entanto, a carta trouxe-lhe novas tarefas. Quando ia para Vale de Cambra aproveitava a viagem de regresso para trazer um carregamento de lenha na carrinha de caixa aberta que conduzia.
Enchia a carrinha com os ramalhos que encontrava nos eucaliptais junto à estrada, apesar dos avisos da mãe que ralhava por não gostar que fosse sozinha para os montes. Às oito horas da manhã lá aparecia em casa com um carrego de lenha, o que lhe dava a noção de dever cumprido. Mas também se lembra de ir apanhar lenha às cinco horas da madrugada, para o monte do povo, como lhe chamavam os antigos, e ter que acartar os molhos a pé.
Luz Ventura casou com 25 anos e aos 27 anos foi mãe. Atualmente é avó de duas meninas, com 14 e 17 anos de idade. A filha é formada e trabalha numa grande empresa do concelho. Já as netas gostam muito de fazer companhia à avó e adoram ajudar no pão, mas é pouco provável que, no futuro, venham a querer dar continuidade ao ofício do pão.
Na sua padaria, Luz Ventura trabalha com uma empregada, Maria de Fátima Oliveira Almeida, também ela padeira e filha de padeira, e de há três anos para cá, também com o genro, Joaquim, que a acompanha diariamente nas vendas. Confia imenso no trabalho da Fátima que a acompanha já há dezassete anos porque ela própria foi criada no pão, é um saber que lhe foi transmitido pelos pais. “É como se fosse uma irmã, nasceu nisto como eu, por isso, o nosso percurso não é muito diferente e se eu tiver de sair por qualquer motivo, sei que o trabalho está a ser guiado como se eu estivesse em casa”, refere Luz Ventura.
Mas também confia que o genro possa apegar-se ao pão e ser ele o herdeiro deste património incalculável de saber e tradição, uma vez que com a experiência vai começando a dominar algumas tarefas mais específicas do fabrico do pão, para além do contacto com os clientes que já conhece bem.
Os clientes são restaurantes, supermercados pequenos, tascas, cafés e vende diretamente ao particular. Tem dias em que dos seus fornos saem 400 padas, outros 500, e ainda outros dias em que fabrica mais de 1000 padas de pão. No que respeita a ganhos, “os supermercados pagam ao mês, as tascas pagam à semana ou ao dia e ao particular entrega o produto numa mão e recebe o dinheiro na outra, porque em sua casa não há livros”, explica Luz Ventura. Também ela como produtora, paga a quem a fornece: “vem a lenha e paga, chega a farinha e paga, compra o sal e o fermento e paga, bem como o açúcar, a canela e os ovos”.
Segundo Luz Ventura, “quem não tiver dinheiro para pão, não tem dinheiro para mais nada. No entanto, reconhece que já não vende aquilo que antigamente se vendia, a realidade atual é bastante diferente, não só porque as pessoas já não consomem tanto pão, mas também porque o preço do pão tem estado sempre a subir. Quem antes comprava oito, agora compra cinco, quem comprava cinco, compra atualmente três. A verdade é que a própria matéria prima tem visto o custo sempre a aumentar e, por causa da guerra na Europa, o grão subiu de preço, bem como o gasóleo, a lenha e o fermento.
Quanto à sua rotina diária deita-se por volta das dez horas da noite e, em dias normais, levanta--se às 5h30 ou 6h00. Nos dias de mercado, levanta-se às duas da manhã, três horas. Nos dias de Feira em Vale de Cambra, a dos 9 e a dos 23, começa a trabalhar à meia-noite. Nunca folga, nem aos domingos, dia em que, por norma, coze pão até por volta das 10h30.
Para além do pão de Ul, também faz pão integral, canocos, carreiras e padas pequeninas. Para as Feiras, em Vale de Cambra, ainda se vendem as tradicionais «carreiras», um conjunto de quatro pães unidos, que era antigamente o pão de Ul, a que os serranos chamavam de «quatro cantos, quatro mamas ou as fogaças, por causa dos quatro bicos».
Recorda com saudades a alegria das feiras nos tempos da mãe. “As feiras hoje recebem muita gente mas não é como antigamente, que era um arraial, era uma festa, mas uma senhora festa”, acrescenta Luz Ventura. “Hoje não têm tantos feirantes, nem tantos visitantes. Nos meus tempos de menina, vinham as pessoas da serra vender os ovos, as bolotas (chamavam-lhe as lêndeas), vendiam castanhas, as tripas dos porcos para os enchidos, enfim, não faltava nada. Negociavam-se animais, vacas, porcos, coelhos, frangos. As feiras eram lindas e bonitas”, descreve Luz Ventura.
“Quando eu estava de férias, a minha mãe levava-me com ela e eu adorava, ai de mim se eu não fosse, eu e o meu irmão. A minha mãe comprava-me um saco de arroz e seiras de figos para eu vender, amarrava-me um avental à cinta com os bolsos para os trocos, era uma forma de eu abrir os olhos e aprender a vender, portanto, eu pesava tudo com uma balancinha e, ao fim da feira, aparecia o lucro todo. Era um contentamento”, recorda Luz Ventura com saudades.
Reconhece que o trabalho é duro, por causa dos horários e da ausência de folgas, mas constata que antigamente era bem pior. Peneirar, amassar e tender à mão era um trabalho manual duro e cansativo que implicava esforço físico e muito desgaste. Agora a profissão, com a introdução de máquinas, já não é tão penosa e a vida assemelha-se a outra qualquer, apenas com horários diferentes.
Foi a primeira padeira a ter amassadeira. “A amassadeira veio para cá quando eu tinha 18 anos, era em ferro fundido e pertencia a uma padaria em Avanca que fechou. Foi um tio da minha mãe que apareceu na nossa padaria com a máquina. Custou sete contos e quinhentos, com o motor e tudo e trabalhou anos e anos. Já a amassadeira atual comprei-a em 2007. A cortadora tem mais de 20 anos, foram os meus pais que a compraram”, explica Luz Ventura.
Luz Ventura gosta de todas as fases do seu trabalho, mas o que mais lhe agrada na sua atividade é o momento de poder contactar com as pessoas nas vendas. “A venda custa menos do que cozer, podemos dar atenção aos clientes e os meus não são muito exigentes, estão sempre de bem com o meu pão porque sabem que é um produto natural, sem químicos, só com fermento, mas pouco, cuja massa é cozida num forno de lenha, o que lhe dá aquele gostinho especial dos tempos antigos”, explica com satisfação.
Luz Ventura gostava de poder trabalhar, tal como a mãe, enquanto tiver força e saúde, porque “é um alento poder estar presente à mesa de tantas famílias e saber que se regalam com o pãozinho de Ul que nasce do carinho que entrega à sua profissão. Alegra-a também saber que, tal como a mãe, construiu um património de saberes, de trabalho e de riqueza que poderá um dia transmitir aos seus, como legado de inestimável valor e consagrada fama.