Adélia Silva, natural de Adães, com 77 anos de idade, não é descendente de padeiras, mas fez do pão a maior parte da sua vida, um ofício que aprendeu com a sogra depois do regresso da Venezuela, onde viveu durante alguns anos e onde viu nascer dois dos seus quatro filhos.
Adélia Silva teve a sorte de nascer no seio de uma família abastada, constituída pelos seus pais e mais cinco irmãos, uma vez que os pais eram comerciantes, proprietários de uma mercearia bastante reputada de Adães. Ambos vendiam nas feiras, o pai vendia tecidos e a mãe produtos de mercearia a granel (arroz, massa, feijão).
O seu pai também era moleiro, moinha a farinha nos moinhos que hoje pertencem ao Parque Temático Molinológico e teve um moinho de arroz em casa. Adélia Silva explica que, ainda pequenita, o pai a mandava parar os moinhos, mas como tinha pouca força para deitar o pejadouro abaixo, era obrigada a pedir ajuda a uma vizinha. Conta, então, que chegada a casa sempre dizia ao pai que “o moinho ficou a andar parado”, porque, na verdade, sabia que tinha dado instruções ao moinho para parar, mas este demorava a responder à sua instrução e ficava ainda a andar, enquanto não acabasse a água da levada que o fazia trabalhar.
A maior parte dos seus irmãos acabaram por seguir a tradição familiar, os rapazes foram moleiros, à exceção de um que emigrou para o Brasil. Posteriormente, o irmão teve um armazém de rações. Quanto à irmã, trabalhou no arroz, nos moinhos da Maizena, no Núcleo Museológico da Azevinheira.
Adélia Silva relembra que a família atravessou tempos de escassez, em que muitas crianças das famílias mais pobres se viam obrigadas a pedir esmola e recorda-se de sempre existir em casa uma malga de arroz que o pai deixava para matar a fome aos que solicitavam auxílio e viviam da caridade dos mais abastados.
Quando chegava o tempo das vindimas recorda-se que as crianças usavam um coco de alumínio para apanhar as bagas de uvas caídas no chão, porque “em tempos de crise não havia lugar a desperdícios e com as uvas caídas conseguiam encher mais uma pipa de vinho”.
Adélia Silva também revive os tempos em que tinha que preparar «o caldo» para a família, com um «punhado» de arroz ou feijão para, da mistura de água e couves, conseguir fazer uma sopa farta. Vezes havia em que em vez de legumes ou leguminosas, juntava uma mão cheia de farinha de milho para engrossar a sopa, numa altura em que, em vez do azeite, que era caro, se fazia «o adubo» para temperar a sopa (numa tijela de barro, ralava-se um bocado de carne gorda, salgada, juntamente com sal, para dar sabor à sopa).
Adélia Silva explica que o pai esteve na origem da criação da antiga fábrica da UDAUL, em 1968, numa altura em que vários «candongueiros», cansados das muitas perseguições dos fiscais, se decidiram a unir esforços e a legalizar a sua atividade de descasque de arroz, transformando-a numa atividade industrial.
Adélia Silva refere, em jeito de graça, que “nasceu na pilha do arroz e foi criada no arroz”. Antigamente, e tendo em conta a quantidade de moinhos que se distribuíam pelos rios Ul e Antuã, muitas famílias dedicavam-se ao descasque de arroz proveniente, essencialmente, de Salreu e da vizinha Canelas, em Estarreja, lugares de abundantes e férteis terrenos agrícolas no chamado Baixo Vouga Lagunar, a poucos quilómetros de distância, mas também das bacias do Mondego e do Vouga.
Numa atividade que nos anos 50 e 60 do século XX obedecia a leis e regulamentos bastante apertados, a fuga à legalidade era frequente e era através do contrabando que o arroz chegava à freguesia de Ul, através dos chamados «candongueiros» de Ul. É claro que onde havia contrabando, a fiscalização era apertada, e a essa perseguição não podiam fugir as gentes de Ul, que tantas vezes arriscavam a vida para não perder o seu ganha-pão.
Adélia Silva partilha um acontecimento marcante e do qual apenas os mais velhos da aldeia se recordam, que aconteceu quando os fiscais perseguiram uma camioneta de arroz até ao largo da Igreja de Ul, com o objetivo de apreender todo aquele cereal que se transformaria em sustento.
Chegados ao largo de Adães, os candongueiros gritaram por ajuda e logo o pároco da freguesia, Padre António Maria Domingues da Fonseca fez «repicar» os sinos da Igreja, ao que o povo acorreu em massa, formando um ajuntamento no largo. As crianças, assustadas, e apercebendo-se de que a ameaça era real, serviram-se de pedras para afugentar os fiscais, que imediatamente bateram em retirada com medo do povo em fúria e descontentamento por tamanha injustiça.
Adélia Silva ainda conta que, no dia seguinte a este bravoso acontecimento, a aldeia se encheu de polícias e o pai acabou por ser levado para a prisão, já que os fiscais, ofendidos, queriam apurar os responsáveis por tal atentado à sua segurança e desrespeito pela sua autoridade e missão. Como tinham sido as crianças as responsáveis pelo atrevimento de expulsar os fiscais, nada conseguiram as autoridades apurar para poder punir os infratores.
Nessa altura, recorda Adélia Silva, os fiscais não só constituíam uma ameaça à atividade do arroz, como também das padeiras de Ul, concretamente, por causa da promulgação, em 1959, do Regulamento do Exercício da Indústria de Panificação, que impunha a reestruturação de infraestruturas para melhoria das condições sanitárias.
Para salvação de todos, valeu a valiosa ação do Padre Fonseca e a notoriedade e poder do magistrado e político Dr. Albino Soares dos Reis, que através dos seus elevados cargos de deputado na Assembleia Nacional, conseguiu contribuir para a defesa e continuidade das profissões tradicionais da aldeia, ligadas ao fabrico do pão de Ul. Na verdade, em 1966, através de despacho do Secretário de Estado do Comércio, foi autorizado o fabrico de pão alvo regional no concelho de Oliveira de Azeméis.
Adélia Silva refere que o Padre Fonseca era um grande homem, muito vaidoso da freguesia de Ul, com altos conhecimentos que lhe asseguravam um elevado estatuto junto de quem tinha poderes de decisão ao mais alto nível. Por isso, ainda hoje é lembrado e amado por todos os habitantes de Ul.
Adélia Silva é uma das mais fidedignas e fervorosas representantes das tradições de Ul, o que lhe vem da sua participação, desde a fundação, no Grupo Folclórico “As Padeirinhas de Ul”, um dos primeiros grupos folclóricos a serem fundados no concelho de Oliveira de Azeméis.
A sua fundação remonta aos anos 50, tendo-se mantido em funções até ao ano de 1966, com a designação de Rancho Regional de Ul. Em 1986 reiniciou a sua atividade, agora como Grupo Folclórico "As Padeirinhas de Ul", e ainda hoje, Adélia Silva integra este grupo folclórico e contribui para preservar a memória de outrora, ajudando a trajar os elementos do grupo a rigor, representando figuras como o moleiro, a padeira ou a vendedeira do pão.
Através do rancho, Adélia Silva levou longe a tão antiga tradição do «apregoar do pão», que sempre ouviu das padeiras mais velhas e que reproduzia com entusiasmo: “Olha as padinhas d’Ul, venha à minha banca, amor, que estão quentes”. “Olha a regueifinha, freguesa, está coradinha”.
Já os poemas que lhe saem da voz, ainda de cor e com a afinação e a força de quem vibra com cada cântico entoado, vêm das antigas récitas, uma forma de declamação ou uma representação teatral, que podia ou não ser acompanhada por música.
O hino das padeiras é a mais bela homenagem à vida e ao trabalho de quem dedica a sua vida ao pão e foi a voz de Adélia Silva e da sua filha Teresa Oliveira que acompanhou o vídeo de apresentação do Projeto Pão de Ul: Uma Profissão com História, que a seguir se transcreve.
Com o testemunho de Adélia Silva, chega ao final este trabalho de recolha etnográfica das histórias de vida das padeiras de Ul, que ajudaram, também, à contextualização geográfica e histórica desta profissão, bem como, à elaboração do retrato social e económico, ao longo dos últimos cem anos, desta graciosa freguesia do concelho de Oliveira de Azeméis.
As Lindas Padeiras
Somos as padeiras de Ul
Do concelho de Oliveira de Azeméis
Cozemos o melhor pão
Que há no distrito de Aveiro
Sou padeira, sou padeira
Esta é a minha profissão
Trabalho de noite e de dia
Por amor à tradição
Cantava as lindas padeiras
As lindas padeiras
da cor das ceifeiras
são rosas a abrir
rosas de ciúmes
e com mil perfumes
vivem a florir
nós somos heróis
somos rouxinóis
que vivem a cantar
Estas puras almas
só vos pedem palmas
Para Ul honrar
Ul é tão lindo recanto
Que possui um raro encanto
De sonho e tradição
Onde habita a saudade
Sem orgulho e sem vaidade
De todos quantos lá vão
Nós tomamos por brasão
Orgulho da profissão
Uma pá e uma peneira
E para melhor adorno
Viver à boca do forno
E à volta da masseira
A nossa terra bendita
Entre todas a mais bonita
A rainha da beleza
Encontra-se em cada canto
Entre o suave encanto
Nossa terra portuguesa
Terra de Santa Maria
Que nós tomamos por dia
Patrona do nosso lar
E onde quer que esteja
Um terno e suave encanto
É uma terra popular
Nossa terra portuguesa
Onde habita a beleza
Onde tudo nos encanta
Onde a própria natureza
Com seu dom de singeleza
Às vezes sorri e canta
As padeiras e os moleiros
Que são sempre os primeiros
A alegrar a mocidade
Trabalhar, cantar e rir
É o destino a seguir
Que nos manda a nossa idade
Letra gentilmente cedida pelo Grupo Folclórico “As Padeirinhas de Ul”