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Celeste Rodrigues Soares: "Antigamente o pão era cozido de véspera para os 9 e os 23 de Vale de Cambra e tudo se vendia, ao passo que agora o povo só quer pão fresco, acabado de cozer".

Oliveira de Azeméis

Em casa de Celeste Soares, às primeiras horas da manhã, cheira a pão a cozer e difunde-se pela velha cozinha o calor da lenha seca a arder no forno. A masseira está cheia e há vestígios de farinha por todo o lado, prova de que por ali já passaram algumas fornadas de pão de Ul.

Do alto dos seus 79 anos, orgulha-se da sua profissão, numa história familiar que envolve a sua mãe, padeira, o seu pai, moleiro, e 14 filhos que deram continuidade aos saberes transmitidos, entre os quais quatro filhas, todas elas padeiras de Ul.

Destes, no presente, apenas três se encontram vivos e Celeste Rodrigues faz notar, com saudade, que “herdou as masseiras da irmã mais velha”, uma vez que as suas deixaram de ter serventia de tão gastas pela ação diária das «rapadouras» usadas para tirar os restos de massa que se agarram à madeira.

Celeste Rodrigues recorda-se bem do moinho do pai, no Avelão, entretanto já desaparecido pela corrosão dos muitos anos e das intempéries que apagam as marcas dos vestígios do passado.

Nesses tempos idos, a farinha moída no moinho da família era vendida pelas muitas padeiras em atividade na freguesia, em sacos de farinha de 50 quilos que eram transportados à cabeça. O pai tinha um «burrico» que ajudava no transporte, mas só o usava quando a entrega ficava distante.

Os muitos filhos nascidos ajudavam em todo o tipo de labores domésticos, desde a atividade moageira à lavra dos campos, porque “nessa altura não havia máquinas nem tratores para sachar as terras. O pai tinha uma junta de bois onde se atrelava o arado, manobrado pelos mais robustos dos seus irmãos, porque essa não era tarefa fácil para gente miúda”, narra Celeste Rodrigues.

Diz o povo que Celeste Rodrigues recebeu da avó, também padeira, a baixa estatura e algumas outras características físicas, semelhanças que, em nada, lhe diminuíram as forças e a coragem para uma vida de trabalho árduo, de grande labuta, abalada por muitas dificuldades e muita escassez.   

Durante a infância, na sua casa, comia-se o que era produzido: “batatas cozidas, couves, a mãe criava uns «franguitos» e matava «um porco d’ano». Bacalhau não faltava, daquele «pequenito», que se comia à noite ao jantar e claro, o pão, que sempre matou a fome”, recorda com desconsolo.

E se os filhos mais velhos não puderam sequer frequentar a escola, Celeste Rodrigues conseguiu tirar a terceira classe, o que lhe valeu a habilidade de ler, escrever e fazer contas. Queria a professora primária que os estudos prosseguissem para a quarta classe, porque, refere “era muito inteligente”, mas os pais não deixaram, uma vez que o seu trabalho era necessário para o sustento familiar.

Quanto à mãe, de quem herdou a arte de cozer, recorda que vendia para o concelho vizinho de Vale de Cambra e que participava nas feiras dos 9 e dos 23. Celeste Rodrigues desabafa que “antigamente o pão era cozido de véspera para os 9 e os 23 e tudo se vendia, ao passo que agora o povo só quer pão fresco, quentinho, é preciso cozer rente à hora a que as pessoas chegam”.

O caminho para Vale de Cambra era feito pelas raparigas novas a pé, com os «carregos» na cabeça, vestidas à pobre, com os antigos aventais de cinta, com os tradicionais bolsos para trazer o «dinheirito», e pés descalços. Como não havia camionetas às cinco horas da manhã, as padeiras aventuravam-se estrada fora, com uns pauzitos na mão, para “iluminar” o caminho. Era a rapariga da frente, normalmente a mais destemida, quem levava os feixes de luz e as outras padeiras seguiam-na. Para cá vinham de camioneta com as cestas vazias.

Quando o tempo era de neve, «neve que fazia dentes», recorda-se da quantidade de vezes que paravam no caminho, para “tirar os aventais da cintura e enroscá-los nos pés para aquecer”. Solução de pouca dura, porque logo as mais velhas incitavam a prosseguir caminho para não atrasar as vendas.

Quando passavam a Ossela, a caminhada era perigosamente interrompida por um ribeiro que só podia ser transposto graças a uma tábua de madeira que fazia de ponte entre as duas margens. “Atravessavam o ribeiro agarraditas a um pau que dava apoio, com a água até aos joelhos e o medo da corrente as levar rio abaixo”, relata Celeste Rodrigues.

Casou-se com 20 anos e foi desde essa altura que começou a fazer o pão sozinha. Até aí sempre trabalhou com a mãe. Só teve uma filha que agora também trabalha na padaria, apoiada pelo genro, e que vendem para Loureiro. Trabalharam ambos na indústria do calçado, mas o desemprego bateu-lhes à porta e, por isso, viram na padaria uma possibilidade de tirarem algum proveito para sobreviver.

Já o marido teve uma fábrica de sapatos junto ao cemitério e foi presidente da Junta de Freguesia ao longo de três mandatos. Por motivos de doença teve de deixar a fábrica e acabou por falecer há 9 anos.

Atualmente, Celeste Rodrigues mantém a sua atividade de padeira apenas para alguns clientes que lhe compram o pão diretamente em casa. Ao contrário das restantes padeiras não coze durante a noite e a sua jornada inicia por volta das sete da manhã, de segunda a domingo, sem direito a férias, “porque o dinheiro não vem parar a casa e é preciso trabalhar enquanto houver forças”, refere.

Faz, normalmente, duas fornadas de pão, cerca de um saco de farinha de 25 kg por dia, mas lembra-se de outrora já ter vendido muito pão para os clientes que tinha em Macinhata da Seixa. Apesar da sobrecarga, nunca teve regateiras a trabalhar para si, embora saiba que havia várias padeiras que contribuíam para o ganha-pão destas mulheres, que optavam por destinos mais longínquos para angariarem clientes.

Gosta muito de cozer o pão porque, na verdade, “sempre foi essa a sua vida”. Mostra-se, no entanto, apreensiva com o futuro, à face das constantes crises económicas derivadas da guerra e dos conflitos internacionais. “Se faltar o trigo, vai acabar por faltar o pão. E o impacto nas padeiras e nas famílias vai ser uma coisa séria”, comenta Celeste Rodrigues com apreensão.

Espera, no entanto, que o tão familiar pão de Ul continue a fazer parte do quotidiano das famílias oliveirenses e dos concelhos vizinhos, porque na aldeia de Ul o pão é muito mais que alimento, ele é história, memória e identidade.

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