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“É preciso ter muita força de vontade, o pão tem de chegar à casa dos clientes a horas”

Oliveira de Azeméis

Lurdes Resende, atualmente com 68 anos, fabrica o pão de Ul desde menina por herança da avó, da mãe e de várias tias, também elas padeiras, com quem aprendeu a arte de amassar, tender e cozer o pão que vai à mesa de muitos oliveirenses. É uma das maiores padeiras da freguesia de Ul e dá trabalho a várias funcionárias, ajudando assim à economia local e à transmissão da tradição para as gerações mais novas. É, desde 2007, presidente da Associação de Produtores do Pão de Ul (APPUL), associação socioprofissional fundada a 29 de outubro desse ano, com sede no Núcleo Museológico do Moinho e do Pão, organismo destinado a apoiar os associados ao nível da produção, comercialização, formação, promoção e manutenção da qualidade deste produto regional genuíno e único.

Esteve na origem da Associação de Produtores do Pão de Ul (APPUL), à qual preside. Conte-nos como tem sido o percurso desta Associação.

A Associação foi criada em 2007 e partiu do grande interesse e envolvimento da Câmara Municipal de preservar a tradição do pão de Ul na freguesia e acentuar o seu valor histórico, ligado à preservação dos moinhos existentes, no sentido de se criar um museu vivo de fabrico do pão de Ul. Naquela altura, os técnicos da Câmara Municipal contactaram com todas as padeiras e chegaram a estar inscritas na associação 26 padeiras de Ul. O objetivo era o envolvimento dos associados no fabrico ao vivo do pão de Ul no Parque Molinológico mas, também, na divulgação da tradição em muitos eventos e iniciativas concelhias. Um outro objetivo primordial era a qualificação do pão de Ul com a Indicação Geográfica Protegida (IGP), classificação oficial regulamentada pela União Europeia atribuída a produtos gastronómicos tradicionalmente produzidos numa região, processo que ainda se encontra em curso.

Lembra-se dos principais eventos em que a Associação esteve envolvida?

O principal é mesmo o Mercado à Moda Antiga onde a associação se faz representar com o fabrico ao vivo e venda direta aos visitantes. Começamos a trabalhar na noite de sexta, às 22h30, e fabricamos em contínuo até às 21h00 de sábado. Depois descansamos um pouco para voltar a estar ao serviço às 6h00 da manhã de domingo cozendo até à noite. O evento Há Festa na Aldeia também mobiliza sempre a Associação através da venda, demonstração e confeção de pão/ pada de Ul, regueifas de Ul e canocos, nomeadamente em Areja, Couce, Porto Carvoeiro, Vilarinho de S. Roque e, obviamente, em Ul. Ainda recordo a participação da APPUL na Bolsa de Turismo de Lisboa - BTL, a cozer num “forninho” pequeno que a Associação tem, iniciativa que foi sempre um su[1]cesso. Finalmente, fomos convidados para vários programas televisivos, com destaque para a Praça da Alegria, Boa Tarde, de Conceição Lino, e participámos em 2007, 2008 e 2009 nas Jornadas do Pão.

Qual é a atividade atual da Associação?

Nos dias de hoje a associação não tem tido muita atividade, é muito difícil manter uma associação deste género a funcionar porque as padeiras têm pouco tempo livre para promover reuniões e participar em eventos. A profissão é muito dura e não permite pausas. Na maior parte das associações existentes o objetivo é recreativo, as pessoas reúnem-se para praticar desporto, aprender música, dançar, cantar, fazer teatro. Na nossa associação reunimo-nos para acrescentar trabalho ao nosso trabalho, o que não é nada fácil, é preciso muita força de vontade. A pandemia veio, obviamente, tornar mais difícil a atividade da Associação porque foram canceladas muitas iniciativas onde a associação era convidada a participar. Por outro lado, cada vez mais vai havendo menos padeiras, as mais velhas vão desaparecendo e as gerações mais novas procuram outro tipo de qualificações e profissões.

Receia pelo futuro desta tradição ancestral?

Não receio pelo futuro, acredito que o pão de Ul não vai morrer. Existirão sempre padeiras que vão fabricar o pão utilizando os métodos tradicionais, mantendo a tradição. As pessoas não vão deixar de gostar do pão de Ul porque é um excelente “pão” que se distingue de todos os outros pelo sabor, pela qualidade.

Fala em sabor e em qualidade. Quais são os fatores distintivos do pão de Ul?

Essencialmente é um pão que se distingue por não levar aditivos e produtos químicos que dão um sabor horrível ao pão. É um produto feito só de água, farinha, fermento e sal. A farinha não é corrigida. Claro que o forno a lenha lhe confere um sabor único porque a madeira usada é de boa qualidade, é o pinho que aquece os fornos e depois há que conhecer bem o forno e o processo de cozedura porque nem todo o pão de Ul fica igual. A diferença passa muito pelo calor do “lar” e pelo tempo de cozedura que o deixa mais ou menos “tostadinho”.

Há mudanças no fabrico do pão dos tempos antigos para hoje?

Há mudanças que acompanharam a evolução dos tempos. O processo de fabrico, em si, mantém-se praticamente igual. Junta-se água à farinha, adiciona-se o sal e o fermento, amassa-se a massa na “masseira”, cobre-se para deixar levedar, meia-hora a uma hora; tende-se o pão e coloca-se na tendeira, aquece-se o forno, colocam-se 4 padas na pá e levam-se a cozer. Antigamente não haviam as chamadas “padas de Ul”. Faziam-se as “carreiras”, que era um conjunto não de dois mas de 4 pães todos unidos. Mas a grande diferença está, por exemplo, na farinha. Antigamente a farinha não vinha peneirada, vinha dos moinhos com o farelo e eram, por norma, as padeiras mais novas que tinham que peneirar a farinha, processo que custava bastante. A partir da década de 70 surgiram as empresas de farinha e ela passou a chegar peneirada às nossas casas. Foi uma grande mudança! A lenha era apanhada nos montes, porque não vinha das serrações como hoje. Apanhava-se tudo, as ripas das cascas dos eucaliptos, os galhos do chão, a floresta estava sempre limpa, não é como hoje. Lembro-me de ver a minha mãe sair com uma foice roçadora para os montes. Trabalhava-se muito antigamente e algumas tarefas eram difíceis e pesadas. Finalmente, surgiram algumas máquinas que ajudam ao fabrico como as amassadeiras e as tendedeiras elétricas, que evitam ter de amassar e tender à mão. Cada máquina de corte faz 30 pães em simultâneo, o processo tornou-se mais rápido, mais eficiente e menos pesado.

Como era feita a distribuição do pão?


Antigamente a entrega do pão era feita a pé, sob o sol, a chuva ou a neve, com as canastras à cabeça, o pão embrulhado nos lençóis e coberto com cobertores para se manter quente. Caminhavam-se quilómetros até às freguesias mais distantes, até São João da Madeira, Vale de Cambra... Lembro-me de o pão ir de comboio para São João da Madeira e ser levantado na estação pelas “regateiras” que o iam distribuir a pé. Também havia um senhor que tinha uma camioneta para distribuir os seus pro[1]dutos e levava também as cestas e canastras de pão de Ul das padeiras. Atualmente, quase todas as padeiras têm carta e o pão é distribuído em carrinhas. Eu tirei carta aos 18 anos e foi uma ajuda preciosa.

Quem são os clientes e qual o volume diário de produção?

Os clientes são, tal como antigamente, os particulares, mercearias, restaurantes e algumas empresas do concelho. Também se fabricava mais pão. As canastras chegavam a levar perto de 200 carreiras. Nos dias de feira trabalhava-se noites inteiras sem parar. Fazia-se o mercado de Oliveira de Azeméis, a Feira dos 4, em Arrifana, a Feira de Espinho, os 18 em Cesar, as feiras de Vale de Cambra, dos 9 e dos 23, os 15 e os 30 no Santo Amaro, a Senhora das Flores, com as regueifas, a Senhora da Saúde e a Senhora do Desterro, em Vale de Cambra, as Festas de La Salette, o São Brás. Estas últimas eram festas onde não se podia parar porque juntavam milhares de pessoas, eram um acontecimento memorável. Atualmente vendo para o Mercado Municipal de Oliveira de Azeméis, por isso ao fim de semana fazem-se muito mais fornadas do que à semana.

O vosso trabalho também se diversificou, têm novos produtos… a tradição está a mudar?

Na verdade, fomos criando novos produtos que os clientes começaram a apreciar e hoje são muito procuradas as regueifas de Ul, o pão com chouriço, o pão com chocolate, os “canocos”. São diferentes, mas o princípio do fabrico e a forma como são produzidos mantêm-se, a base do pão é a mesma e são produtos cozidos no forno a lenha. No entanto, não são confeciona[1]dos diariamente, a não ser por encomenda. Mas não acredito que a tradição possa mudar, o pão de Ul será sempre a atividade principal, é insubstituível. Mas também as padeiras têm que evoluir e adaptar-se aos gostos dos clientes.

É feliz na sua profissão?

Sou feliz na minha profissão, claro que se passam momentos bons e outros menos bons. Tenho pessoas que me ajudam na padaria, essencialmente familiares, que ensino para aprenderem a fazer o pão e que já têm muita arte. Isso traz-nos a esperança de que no futuro possam continuar na profissão para que a tradição nunca se perca. Tenho também outras colegas padeiras que me ajudam quando preciso e essa amizade leva-nos a ter mais vontade de participar quando nos pedem para preservar a tradição que faz do pão de Ul um património social, cultural e gastronómico identitário da nossa freguesia. Esta profissão é dura, é preciso ter muita força de vontade para trabalhar no pão, não há descanso, nem folgas, nem férias, o pão tem de chegar à casa dos clientes a horas.•

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